1.10.09

nº 23 do livro do desassossego

É uma oleografia sem remédio. Fito-a sem saber se vejo. Na montra há outras e aquela. Está ao centro da montra do vão de escada.
Ela aperta a primavera contra o seio e os olhos com que me fita são tristes. Sorri com brilho de papel e as cores da sua face são encarnado. O céu por trás dela é azul de fazenda clara. Tem uma boca recortada e quase pequena por sobre cuja expressão postal os olhos me fitam sempre com uma grande pena. O braço que segura as flores lembra~me o de alguém. O vestido ou blusa é aberto num decote ladeado. Os olhos são realmente tristes: fitam-me do fundo da realidade litográfica com uma verdade qualquer. Ela veio com a primavera. Os seus olhos tristes são grandes, mas nem é por isso. Separo~me de defronte da montra, atravesso a rua e volto~me. Ela segura ainda a primavera que lhe deram e os seus olhos são tristes com o que eu não tenho na vida.
Vista à distância, a oleografia tem afinal mais cores. A figura tem uma fita de cor mais rosa contornando o alto do cabelo; nem tinha reparado. Os olhos tristes desta oleografia que contemplamos à distância fitam~me como se eu soubesse de Deus. É curioso de onde, afinal, eu conhecia a figura. No escritório da Rua dos Douradores há, no canto do fundo, um calendário idêntico, que tenho visto muitas vezes. Mas, por um mistério, ou oleográfico ou meu, a idêntica do escritório não tem olhos com pena. É só uma oleografia. Que olhos me fitavam na montra? Estou quase a tremer. Ergo involutariamente os olhos para o canto distante onde a verdadeira oleografia está. Levo constantemente a erguer para lá os olhos.


(Bernardo Soares)

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